Olhe pra essa página.
Pra ela funcionar, você tem que participar. Tome o tempo que quiser. É você quem dará vida aos desenhos, é você que fará a água correr pela sarjeta. É você que pode viajar pelos escritos de todo o lixo que é tragado pelo bueiro. É você a única testemunha da pequena história que só se revela no último quadrinho. Mas pra tudo isso funcionar, depende de você.
Agora imagine esse mesmo episódio em um filme. Funcionaria? Talvez uma câmera lenta que nos desse tempo de ler a carta no final. Mas ainda assim, teríamos tempo pra ler a mensagem? E a câmera lenta não quebraria o ritmo?
E se fossemos narrar esse episódio na forma do conto escrito? Funcionaria? Poderíamos descrever como bem entendêssemos a água deslizando pela sarjeta, o lixo sendo arrastado por ela. Usar um texto mais objetivo ou perfumar a descrição com alguma poética. Ainda assim, os desenhos, a imagem, deixam muito mais espaço para o leitor aplicar toda sua própria poética.
Cada linguagem tem sua própria engrenagem, suas regras e limites. Às vezes, esses limites podem ser uma vantagem. Pra mim, a ideia acima funciona bem porque é uma história em quadrinhos. Estou certo de que ela não poderia ser melhor representada se fosse um filme ou um conto. Talvez uma música...
Fragmentos são arrastados pela sarjeta. A grande maioria é puro lixo, besteira, garatujas incompreensíveis. Mas, se nos déssemos ao trabalho de olhar com cuidado, com sorte, perceberíamos uma pequena tragédia, ou comédia, escorrendo por ali. Pedacinhos de vida legítima. Um fragmento na sarjeta e a partir dele você pode preencher o resto do quadro como quiser.
Nas histórias em quadrinhos, o espaço entre um quadrinho e outro é chamado de sarjeta.
É na sarjeta que o leitor constrói a história, amarrando o significado de um painel a outro. E aqui, o que se desenha e escreve é menos importante do que aquilo que não se desenha, nem escreve.
Matar um homem entre os quadros significa condená-lo a milhares de mortes (Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos)
Na vida real, a sarjeta extrapola os limites da rua para os papéis nos cestos de lixo, as pixações na porta dos banheiros, os quartos vazios e desarrumados, as janelas dos prédios que se parecem tanto com quadrinhos em uma página. Os gestos e olhares de uma pessoa.
A página que abre o post é do livro Nova York: a vida na grande cidade, de Will Eisner, lançado por aqui pela Companhia das Letras.
A vida é rica, a cidade é pulsante, as pessoas são apaixonantes e Eisner mostra isso tão bem que estou sorrindo até agora. Velhinho observador, ele coleta histórias de mendigos, velhos solitários, vizinhos dos bairros pobres, amigos de rua, perdidos da cidade. Aquela gente feia pra quem você não dá a mínima.
As Pessoas Invisíveis e suas pequenas tragédias.
O que a obra de Eisner escancara é a solidão. E é estranho notar como, mesmo no meio de tanta gente, tanta gente esteja sozinha.
Engraçado, não acha?
(Esse texto foi publicado originalmente nesse blog em meados de 2012).
(Esse texto foi publicado originalmente nesse blog em meados de 2012).